O atropelamento de Porto Alegre trouxe uma repercussão raramente vista envolvendo ciclistas. De imediato surgiram manifestações, interpretações e tomadas de posição as mais variadas. O movimento Massa Crítica caracteriza-se por intervenções que, em alguns momentos, são contestadas inclusive por integrantes de outros movimentos que propõem estratégias diferentes. Incidentes de carros atropelando manifestantes em bicicletadas são mais frequentes do que se possa imaginar. Nenhuma delas, no entanto, com o grau de violência e covardia quanto o de Porto Alegre onde o que decorria era uma manifestação alegre e descontraída que, aparentemente, pouco "transtorno" trazia ao tráfego. Mas, deixando de lado diferenças de interpretações, algumas mais de detalhe, o que mais nos chamou a atenção, conforme exposto desde o início aqui no PINHA LIVRE , foi a posição das "autoridades" que deixam claro, de uma forma que parece até inconsciente, ainda que em parte motivadas por não terem "autorizado" a manifestação, o pré-julgamento e o preconceito que tem em relação aos ciclistas e, por consequência, ao emprego da bicicletas nas cidades. Transcrevo, por isto, o texto de Walter Hupsel , divulgado pelo Yahoo ( http://colunistas.yahoo.net/posts/9187.html) , que enfoca de forma muito bem localizada, colocando-a ao mesmo tempo dentro de um contexto, esta questão.
Rua sem saída
Na semana passada aconteceu um ato bárbaro em Porto Alegre, mas poderia ser em qualquer cidade brasileira.Um motorista, dentro do seu possante Golf preto, irritado com a lentidão do trânsito a sua frente, simplesmente passou por cima de dezenas de ciclistas, fazendo um strike humano. São imagens chocantes da barbárie, pura e inconteste, que nos aterroriza exatamente porque nos mostra quem somos, campeões de violência e morte no trânsito.
A rua é a metáfora perfeita da vida em sociedade. Se nossa esfera privada pode ser a dita “casa”, a esfera pública é rua. É ela que pulsa e dá dinamismo à sociedade, mas, no nosso caso, é nela também que morremos abruptamente.
A rua, no Brasil, não foi pensada para o pedestre. As calçadas são estreitas e acidentadas, quando não ocupadas por carros. Andar por elas, quando possível, é um exercício de paciência e de risco. A rua foi feita para primazia do carro, para que o motorista tenha caminho mais livre, em detrimento do pedestre, do usuário do transporte coletivo ou do ciclista. Não é difícil perceber isso quando olhamos os orçamentos municipais destinados para cada um deles. Gasta-se uma fortuna em obras viárias para os automóveis enquanto pouquíssimo para metrô, ônibus ou ciclovias.
Somos, juntamente com os Estados Unidos, uma sociedade de carros. Fizemos essa opção lá atrás, e continuamos a fazê-la repetidamente. São escolhas políticas, pelo individualismo nefasto que se constrói contra o público, contra a rua. E a nossa rua, sempre refeita para que permaneça a mesma, é aquela que um conservador de boa cepa diagnosticou no começo do século 20: é a imunidade da propriedade, seja em relação aos subordinados, seja em relação ao Estado. É quase a extensão natural do domínio da Casa Grande. É, assim, o domínio da propriedade privada, e exclusiva, contra a esfera realmente pública.
A sociedade do automóvel é a sociedade do privado e do insulamento, que transforma o público em seus próprios domínios. Privatizamos a esfera pública, pois a mediamos através dos carros.
Escolhemos viver em condomínios fechados, em carros idem. Condomínios que nos dão a falsa sensação de isolamento de uma sociedade violenta. Mas é o próprio isolamento que a torna assim, numa lógica circular e viciosa. O carro é a manifestação extrema desse isolamento, e, por isso, também é o símbolo maior de status.
Quem não se lembra do comentarista José Carlos Prates reclamando, explicitamente, na maior rede de comunicação do Sul do país que hoje “qualquer miserável tem um carro”?
Prates faz coro ao novo queridinho da direita tosca – o Olavo de Carvalho de All Star, como denominou com perfeição Michel Blanco –, Luiz Felipe Pondé, que reclamou dos pobres terem transformado uma outrora ilha de iguais, o avião, em um churrasco na laje.
Grande paradoxo. Queremos o conforto, as benesses e os bens propagados pelo capitalismo como a última instância do Éden na terra, mas queremos que sejam bens exclusivos, que só alguns tenham acesso.
Logo depois do ato bárbaro do motorista de Porto Alegre, vozes das autoridades correram pra defendê-lo, ou ao menos para atenuar aquilo que pode ser definido como uma tentativa de homicídio qualificado.
O delgado criticou a vítima. Para esse douto senhor os ciclistas se expuseram ao risco ao não pedirem autorização ao poder público para fazerem a manifestação. E arrematou com uma brilhante frase: “Aqui não é a Líbia. Aqui tem toda a liberdade para fazer manifestação, desde que avisem as autoridades. Faz a tua manifestação, mas não impede o fluxo de automóveis. Se tu impedes, dá confusão, dá baderna, dá acidente. Fica o alerta”.
E a cereja do bolo fica por parte do prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, que, quase tentando inocentar o sociopata do Golf, afirmou, horas depois da tentativa de homicídio, que a reunião de tantas bicicletas seria ilegal. Só faltou fazer coro com Jânio Quadros e dizer que as mulheres são as culpadas pelos estupros sofridos, já que não se vestem decentemente.
Inconscientemente, as autoridades ali não defendiam a pessoa que estava atrás do volante. Defendiam nosso legado, nossa rua como extensão da casa, privatizada, cujo símbolo maior é mesmo o carro. Agiram, assim, como advogados de defesa de uma sociedade segmentada, excludente, violenta. Defenderam o nosso legado, a nossa barbárie.
Chamem o ladrão!
Na semana passada aconteceu um ato bárbaro em Porto Alegre, mas poderia ser em qualquer cidade brasileira.Um motorista, dentro do seu possante Golf preto, irritado com a lentidão do trânsito a sua frente, simplesmente passou por cima de dezenas de ciclistas, fazendo um strike humano. São imagens chocantes da barbárie, pura e inconteste, que nos aterroriza exatamente porque nos mostra quem somos, campeões de violência e morte no trânsito.
A rua é a metáfora perfeita da vida em sociedade. Se nossa esfera privada pode ser a dita “casa”, a esfera pública é rua. É ela que pulsa e dá dinamismo à sociedade, mas, no nosso caso, é nela também que morremos abruptamente.
A rua, no Brasil, não foi pensada para o pedestre. As calçadas são estreitas e acidentadas, quando não ocupadas por carros. Andar por elas, quando possível, é um exercício de paciência e de risco. A rua foi feita para primazia do carro, para que o motorista tenha caminho mais livre, em detrimento do pedestre, do usuário do transporte coletivo ou do ciclista. Não é difícil perceber isso quando olhamos os orçamentos municipais destinados para cada um deles. Gasta-se uma fortuna em obras viárias para os automóveis enquanto pouquíssimo para metrô, ônibus ou ciclovias.
Somos, juntamente com os Estados Unidos, uma sociedade de carros. Fizemos essa opção lá atrás, e continuamos a fazê-la repetidamente. São escolhas políticas, pelo individualismo nefasto que se constrói contra o público, contra a rua. E a nossa rua, sempre refeita para que permaneça a mesma, é aquela que um conservador de boa cepa diagnosticou no começo do século 20: é a imunidade da propriedade, seja em relação aos subordinados, seja em relação ao Estado. É quase a extensão natural do domínio da Casa Grande. É, assim, o domínio da propriedade privada, e exclusiva, contra a esfera realmente pública.
A sociedade do automóvel é a sociedade do privado e do insulamento, que transforma o público em seus próprios domínios. Privatizamos a esfera pública, pois a mediamos através dos carros.
Escolhemos viver em condomínios fechados, em carros idem. Condomínios que nos dão a falsa sensação de isolamento de uma sociedade violenta. Mas é o próprio isolamento que a torna assim, numa lógica circular e viciosa. O carro é a manifestação extrema desse isolamento, e, por isso, também é o símbolo maior de status.
Quem não se lembra do comentarista José Carlos Prates reclamando, explicitamente, na maior rede de comunicação do Sul do país que hoje “qualquer miserável tem um carro”?
Prates faz coro ao novo queridinho da direita tosca – o Olavo de Carvalho de All Star, como denominou com perfeição Michel Blanco –, Luiz Felipe Pondé, que reclamou dos pobres terem transformado uma outrora ilha de iguais, o avião, em um churrasco na laje.
Grande paradoxo. Queremos o conforto, as benesses e os bens propagados pelo capitalismo como a última instância do Éden na terra, mas queremos que sejam bens exclusivos, que só alguns tenham acesso.
Logo depois do ato bárbaro do motorista de Porto Alegre, vozes das autoridades correram pra defendê-lo, ou ao menos para atenuar aquilo que pode ser definido como uma tentativa de homicídio qualificado.
O delgado criticou a vítima. Para esse douto senhor os ciclistas se expuseram ao risco ao não pedirem autorização ao poder público para fazerem a manifestação. E arrematou com uma brilhante frase: “Aqui não é a Líbia. Aqui tem toda a liberdade para fazer manifestação, desde que avisem as autoridades. Faz a tua manifestação, mas não impede o fluxo de automóveis. Se tu impedes, dá confusão, dá baderna, dá acidente. Fica o alerta”.
E a cereja do bolo fica por parte do prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, que, quase tentando inocentar o sociopata do Golf, afirmou, horas depois da tentativa de homicídio, que a reunião de tantas bicicletas seria ilegal. Só faltou fazer coro com Jânio Quadros e dizer que as mulheres são as culpadas pelos estupros sofridos, já que não se vestem decentemente.
Inconscientemente, as autoridades ali não defendiam a pessoa que estava atrás do volante. Defendiam nosso legado, nossa rua como extensão da casa, privatizada, cujo símbolo maior é mesmo o carro. Agiram, assim, como advogados de defesa de uma sociedade segmentada, excludente, violenta. Defenderam o nosso legado, a nossa barbárie.
Chamem o ladrão!
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